Andrej Blatnik (1963, Ljubljana), começou como baixista de um grupo
de música punk, aos vinte anos publicou o seu primeiro livro de contos
e tornou-se o nome mais apreciado em termos de uma ficção nova e diferente.
A expressão de Blatnik destaca-se pela transformação de histórias simples
e comuns que levam o leitor a seguir uma linha ténue entre o terrível
e o cómico. A pesquisa de um equilíbrio desse género é uma das características
da sua obra - contos e dois romances Lágrimas (1987), Tao amores (1987).
Este último serve-se das fórmulas de pulp-fiction para ironizar as novas
ideologias encarnadas pelos líders das seitas de leste. Sob a superfície
ligeira da narrativa, assistimos a um drama íntimo dos personagens que
procuram alguma coisa, sem saber o quê. O romance desenvolve os problemas
multiculturais e a relação entre a cultura "alta" e a cultura popular,
um tema que Blatnik trata também nos ensaios, crónicas de viagens, reunidos
em dois livros.
A obra que mais o estableceu no mundo da ficção, foi o livro de contos
Mudanças de pele (1990) para qual recebeu o prémio da cidade de Ljubljana,
dois contos foram adaptados e realizados para cinema. Mudanças de pele
assim como alguns novos contos vão ser imprimidos no ano 2000, foram publicados
pelas mais prestigiosas revistas literárias mundiais. Os contos de Mudanças
de pele foram traduzidos e publicados no estrangeiro. A crítica eslovena
escreveu que "a leitura da ficção do Blatnik é como dar uma volta de
Mercedes", os críticos espanhois (Cambios de piel, Libetarias /Prodhufi,
Madrid, 1996) que " se trata de um de autores des contos da Europa central
que mais promete", os críticos ingleses (Skinwraps, Northwestern University
Press, Evanston, 1998) que "o livro é capaz de mostrar como depois da
abertura da Europa de leste, a alienação está a entrar mais depressa
do que as alterações políticas e sociais" (New York Times, February
28, 1999). Mais algumas críticas: "Esta colecção pode ser lida a uma
vez e é sufcientemente interessante para ser lida várias vezes." (San
Diego Union-Tribune, November 8, 1998), "a artesania do Blatnik e a gota
do modernismo aponta a nossa atenção ao que é pequeno, estranho e essencial
, no mundo em que vivemos." (Publichers Weekly, October 12, 1998). "A ficção
curta, superlativa de um autor jovem e excitante." (Kirkus Rewiev, November
15, 1998).
Quando o homem volta do trabalho antes do que é habitual, encontra a sua mulher na cama com outro. Com o seu melhor amigo, evidentemente. Pois tomaram o assunto muito bem! O que posso fazer? Que é o que se faz quando ocorre isso? pergunta-lhes, sem estar preparado. Em seguida passa pela sua mente: no armário, debaixo das camisas, uma pistola está escondida numa camiseta velha. Quando o exército saiu ao sul, foi possível comprar a bom preço essas coisas, e decidiu fazer reservas para os maus tempos, como todos os que tiveram a possibilidade de fazê-lo.
Aqueles dois, abraçados tristemente debaixo do lençol coberto de diminutas flores, não dizem nada. Também ele não conhece a resposta. Porque a vida moderna deve ser tão complicada? pensa. Tira a pistola do armário, só para que fique claro com que deves contar, se assim, fora da lei, te instalas debaixo da coberta comum. A mulher diz, não faça escândalo, não o fará, você não se atreve, você não é tão macho. Não? pergunta o homem, que não? O amigo toma-o mais em sério, o homem sabe que as manchas na sua cara não são só do calor do verão. Que não! grita o homem encorajado com o medo do amigo, que não?
Sujeita a pistola firmemente empurrando-a debaixo do queixo ora do amigo ora do seu. O sudor que corre pela cara do amigo goteja sobre a pistola, e o homem não gosta disso não, a situação tem cada vez menos dignidade. Por isso move a pistola do queixo do amigo ao seu e assim sucessivamente cada vez mais depressa. Bem, diz qual dos dois queres mais, a qual dos dois disparo, grita à mulher. Ela diz-lhe ainda duas vezes que ele não é tão macho como faz acreditar, cada vez mais baixo, então começa a rogar que guarde a pistola. Se não, vai chamar à policía.
Chama à policía., chama-la! diz-lhe o homem. Antes de que você colgar, todos estaremos mortos, e quando chegarem os azuis também a casa vai arder. Não pensa em sério, só ameaça, para fazer um pouco de escândalo, para que eles sintam terror e para que ele volte a ter confiança em sim mesmo. O que faz a gente quando lhe acontece isto? pregunta-se de novo. E compreensível que ninguém fala com agrado destas coisas. De todas as formas a violência não lhe parece adequada, ele e um espíritu tranquilo, e além disso, ele viu, que o almoço o espera na cozinha, como sempre, um frango bem frito no fogão lembra-lhe que a sua mulher não é tão ruim como poderia pensar neste momento.
Poderia jurar que aquele diabo disparou-se sozinho, no meio caminho entre o seu pescoço e o pescoço do seu amigo, e a bala foi a parar diretamente no televisor. Um estrépito terrível e depois silêncio total. Nem a mulher grita como era de esperar, todos esquadrinham para ver o que vai suceder, quem vai vir e bater na porta. Nada. Segue o silêncio profundo. Como se ninguém tivesse ouvido.
E depois diz a mulher em voz baixa: eu pensei que finalmente a gente ia conhecer os nossos vizinhos, e ri fortemente. O amigo começa a olhar ao redor e o homem sabe porque o amigo titubea desconfortávelmente, diz-lhe que se ponha a roupa, e se vem a policia, não pode receber aos policías assim, com o cu desnudo, ja terminará logo com a mulher. O amigo assente com a cabeça, começa a enfiar as calças, pergunta ao homem se sabe como está tremendo. Parece que sim, pensa o homem, assim não acertaria nem a se mesmo se quisesse, e que faço eu com a pistola, isso não é para mim. Envolve-a cuidadosamente na camiseta, porém coloca-a na mesa diante de si para que fique claro quem manda. A boca está resseca, sinte que lhe apeteceria uma cerveja, vai a cozinha, até o refrigerador, mas não tem lá mais cerveja.
O homem pergunta à mulher onde desapareceu toda a sua reserva. O amigo tose e pede perdão, o dia foi quente, que se pode fazer, e depois, o homem conhece-lhe e sabe que não pode deixar de beber uma vez que começa. Para devolver o favor diz que convida a uma copa no outro lado da rua. A mulher diz que ela também quer ir e vão os três e bebem uma ronda, e outra.
Quando já beberam bastante e é tempo de fechar e a camareira arrastra as cadeiras por debaixo das bundas, o homem diz ao seu amigo: porta embora a minha mulher e desculpa por ter assustado vocês, perdoa o meu egosimo, desejo-lhes muita felicidade na vida comum, e se tiver dinheiro de sobra, comprem-me um televisor novo, e tudo fica arranjado. Ele tem consciência de que fala com demasiado sentimento, mas não importa, pensa, tudo vem do coração.
E o amigo diz-lhe: não, leva-a a casa, é tua, e antes bate-me. Sim, bate-me, fratura-me o nariz e diz-me que sou um desgraçado. Se isso não fôr suficiente, você sabe onde eu moro, provávelmente a minha mulher também não tem as pernas juntas toda a manhã. E a mulher diz, ainda antes que o amigo termina, e para evitar que comece um diálogo de homens: não se batam por mim, não valgo os dois, provávelmente eu deveria saltar debaixo de um trem ou algo semelhante, pero a vida tem também momentos belos, não quero perdê-los, já perdi muitos, vocês compreendem, não é ... Sim, sim, compreendem, não é.
E verdade, diz o homem, temos em casa um frango no fogão, pode-se aquecer rápidamente, porque não vamos a nossa casa, não comi nada o dia inteiro. Eu também não, afirmam os dois, e assim logram obter outra ronda de cerveja para o caminho e vão tudos comer frango. Não vai você a bater em mim? pergunta o amigo enquanto estão comendo os últimos bocados de carne dos ossos, e jogando os ossos por detrás da espalda sobre os pedaços de vidro e as bordas pontiagudas vão ficando brandas e enquanto a vista da garganta rota do televisor vai ficando cada vez mais familiar. O homem faz um gesto com a mão; é necessário mencioná-lo? Somos amigos, não é?
Então eu quero ir a casa, diz o amigo, já é muito tarde, a minha mulher estará preocupada, sou um homem fiável, sempre chego pontual. Bêbedo assim não pode sentar-se ao volante, encarece-lhe o homem, você vai dormir aqui, a vida é muito preciosa, você não deve jogar com ela. Bem, diz o amigo, bem, onde é que me posso deiitar? Não, não compreenda assim, não pensei nada mau, corrige-se em seguida.
O homem fica calado, olha a mulher. Ela também não fala. Quanto tempo dura essa relação? pergunta o homem. A mulher sigue calada. Você não quer saber, não é? diz finalmente. Você sabe, na verdade a vida é uma opereta. Para que fingir? Todos nos esforçamos para que não passe antes de darnos conta. Para que de uma maneira… Você sabe: de uma maneira.
Não entendo, diz o amigo, o que é que vocês estão falando? Vocês
sempre conversam assim? Desculpem, eu tenho muito sono, eu vou me deitar
aqui mesmo. E cai sobre o sofá no salão e começa a roncar imediatamente.
Mulher, diz o homem, o seu frango é cada vez melhor, porém, mereço isso? Olha para ele, nem se despojou dos sapatos. E com uma pessoa assim eu encontro você. Perdoa, diz a mulher, é o teu amigo, você o trouxe a casa, você deveria ser mais escrupuloso. Eu, desafortunadamente, não tenho muitas oportunidades para conhecer homens. A minha vida, você sabe muito bem, não é tal qual eu esperava. Você quer que eu chore a vida ás escondidas? Você sabe, cada um ajuda-se a sua maneira como pode. E perdoa, também eu estou um pouco cansada, foi um dia muito esgotador. E se formos a dormir? Amanhã você deve ir de novo ao trabalho, não esqueça.
E assim os dois vão ao quarto, deitam-se e como cada noite tomam-se
as mãos. O homem olha os lençóis e diz: eu não gosto dessas pequenas
flores, devemos trocar isto por outra coisa. A mulher resmunga algo incompreensível,
acaricia a mão dele e dorme-se em seguida, cansada do dia, o homem segue
olhando durante muito tempo o teto, sente o sabor um pouco salgado da crosta
do frango na sua boca e pensa se pagou demasiado pela pistola e se talvez
encontre alguém que a troucasse por um televisor sólido. Amanhã, pensa,
amanhã deve perguntar ao amigo se conhece alguém interessado em trocar.
Devem existir pessoas que necessitem isso, os tempos não são de fiar.
Ainda bem que aquele que ronca no sofá e quem nem despojou-se dos sapatos
é o seu amigo, pensa, quando o sono começa a apoderar-se dele. Se fosse
outro é possível que eu disparasse, e então tudo seria muito mais grande
que a sua vontade, então não haveria caminho para atrás. Ainda bem.
Tradução: Jasmina Markič
Depois chegou o chefe. Hunter deu-lhe o bolso com sal e disse-lhe quem o enviava. O chefe fez careta e Hunter teve a impressão que o jovem que conheceu numa das suas borracheiras nos bares do porto e que lhe recomendou que fosse a sua aldeia, não era muito bem considerado entre a sua gente, e que o rapaz fazia ostentação, bebendo copo sobre copo. Porém já era demasiado tarde para cambiar de opinião. Quando a linha de ônibus funcionava, era só uma vez por semana.
O chefe falou-lhe na sua língua gutural da qual Hunter obviamente não pôde espremer nem uma sílaba. O velho repetiu duas vezes mais o seu refrão, logo deu-se por vencido e chamou uma pessoa que falava um pouco de swahili. No seu melhor swahili Hunter quis explicar que não falava bem o swahili e pediu uma choça vazia que nessas aldeias destinam a hóspedes. O chefe fazia vênias e vênias. Depois encarou Hunter e parecía que estava reflexionando demoradamente. Hunter sentiu como o suor escorregava ao longo da espalda. O caminho a pé era longo para voltar à cidade.
Logo o chefe agarrou a mochila gasta de Hunter e pesou-a. Hunter extendeu a mão instintivamente. Desde que o assaltaram, todos os dias quando raspava com a colher os pratos de metal nos refectórios dos caminhos ou quando escrevia na sua agenda de viageiro, treinava mentalmente esse gesto - um ladrão que passa, quer agarrar sua mochila, mas ele é mais rápido, agarra o saco, tal vez também a mão do ladrãozinho, tudo é claro, tudo é decidido. Não há dúvidas. Nunca experimentou essa situação, toda a sua espreita resultou inútil, ninguém mais desejou os seus pertences de viajeiro. E agora reagiu num momento errado.
O chefe olhou-o intrigado e Hunter pensou que ele mesmo provocou a sua derrota. Como aceitar na aldeia uma pessoa que não lhes tem confiança? Aqui, num plano aberto, os sentimentos devem ser mútuos, as doses devem ser equivalentes em alto grau. Se ele não confia neles, como podem eles ter confiança nele?
Procurou minimizar o erro; reagiu instintivamente, fingiu que necessitava urgentemente alguma coisa. Mas que pode necessitar uma pessoa que provávelmente acabava de receber teito, isso é, tudo do que dispunham na aldeia? O melhor seria, pensou, fingir que decidiu regalar ao chefe outra coisa além do sal. E assim buscou na mochila; mas após meses de viagem não ficava muita coisa nela. Finalmente sentiu algo liso e soube: um pequeno espelho com o qual se afeitava, quando ainda se afeitava. Agora não precisava mais, compreendeu. Entregou-o ao chefe.
O chefe tomou-o com cuidado e encarou com desconfiança o seu reflexo no pequeno rectángulo. De uma maneira exploradora e extática acercava a sua imagem aos olhos e voltava a afastá-la. Parecia-lhe que a cara no espelho fôsse conhecida mas não bastante para ousar dirigir-lhe a voz.
Por isso voltou a falar com ele. Isso é, falou ao espelho, e o homem que conhecia um pouco de swahili fez um gesto afirmativo e falou em swahili. Hunter não compreendeu nada excepto a palavra mzungu estrangeiro. Levantou as mãos sem força e o tradutor fez o mesmo. O chefe fez um sinal afirmativo e disse uma só palavra: “Mary”.
As crianças precipitaram-se bradando à margem da aldeia. O tradutor estendeu a mão a Hunter, acocorou-se diante do chefe e pôs-se a recuar. O chefe indicou a Hunter que se sentasse. Hunter olhou para o chão, exatamente onde lhe mostrou o chefe e, num gesto automático, limpou a poeira do chão. Trabalho inútil: debaixo havia ainda mais poeira.
Depois esperaram em silêncio até que se acercou uma mulher, acocorou-se diante do chefe e disse a Hunter: ”Welcome”.
Hunter pensou que estava delirando. Desde que tinha bebido água da fonte da aldeia em Ga-mendi, não se sentia muito sóbrio, e parecia-lhe que via menos e ouvia de outra maneira. De qualquer modo, foi o primeiro inglês que ouvia depois da conversação com dois franceses que conduziam carros roubados através do deserto de Saara e despojaram-no da cintura com os documentos. Uma estratégia simples: a faca no pescoço. Todos os treinamentos de campo aonde o mandava Cherin não ajudaram nada frente ao contato com o frio metal afiado. Isso não o humilhou demasiado; de qualquer jeito nos treinamentos consagrava a maior parte do tempo a pensar como não era o melhor homem para a tarefa.
- A senhora fala inglês? - perguntou. A mulher afirmou.
- Falo sim. Chamo-me Mary. O meu nome é outro, porém para o senhor
serei Mary.
- Como é isso? Onde aprendeu?
A mulher sorriu ante a sua surpresa.
- Estudei em América. Washington D.C. E não terminei. Durante um
tempo trabalhei num restorante africano, depois voltei.
- Porque voltou? Hunter sentiu que a pergunta era impertinente no momento
que a pronunciou. Se ele veio a essa aldeia, porque não poderia vir outra
gente? E especialmente alguém que foi embora daqui.
- Se não pode cambiar o destino da maioria, deve comparti-lo, disse
a mulher e pôs-se a fitar o chão.
A frase pareceu-lhe conhecida a Hunter. Sonava como uma frase que pronunciaria Cherin quando na reunião da cela não houvesse mais argumentos para as ações suicidas. Cherin lhe enviava por correio eletrónico sempre a mesma pergunta: porque você fugiu? Porqué nos abandonou? Hunter nunca respondia; onde iria a parar se respondesse à gente da qual fugia. Mas se decidisse responder, talvez diria: por causa da retórica gasta. Isto ofenderia sobremaneira Cherin.
O chefe tocou sua mão e começou a falar. Falou durante muito tempo, a rapariga traduziu tudo numa única frase. “Está contente de que o senhor tinha vindo à nossa aldeia.”
Hunter arfou. Agora chegou o momento em que pensava sem cessar desde que decidiu deixar tudo e viajar o mais longe possível. De repente pareceu-lhe importante como formular a sua pergunta. Então compreendeu que toda a sua precaução não tinha sentido: estava totalmente nas mãos da tradutora que trocaria as suas palavras como bem lhe parecesse.
- Eu vim à procura do Sem-nome, disse esperançado que o compreendesse e encontrasse na sua língua extraterrestre o nome justo para o Sem-nome. Esperançado que o chefe fizesse um gesto afirmativo, esperançado que finalmente encontrasse o que estava procurando.
A mulher traduziu. O chefe franziu a frente e olhou severamente. A mulher repetiu o mesmo texto e agora o chefe fez uma gesto afirmativo para cada palavra.
- O Sem-nome, repetiu ele mesmo em um inglês tão bom como o de Hunter. E continuou na sua língua.
- Disse que está contente de ter conhecido o Sem-nome, explicou a mulher. Disse que é uma grande honra que o Sem-nome visite a sua aldeia.
Hunter sentiu como aumentava o calor com cada palavra pronunciada. Desde a terra, que terra, desde o conglomerado de pó que sentía debaixo dos pés, emanava o calor.
- Então, disse, então -. Sabia o que queria dizer, queria perguntar: Quem é ele? Como é o Sem-nome? Quando vem? O posso ver? Pode alguém fazer a minha apresentação? Algo assim pode e deve acontecer somente aqui, corria-lhe pela mente, somente aqui, neste último buraco do mundo, onde poderia ser, se não fosse aqui onde as coisas ainda não trocaram centos de nomes, e essa aldeia tem um nome, deve ter nome, mas agora não posso lembrar, ninguém o conhece, no ônibus a gente olhava para mim estranhada quando me pus a gritar que parassem, que parassem de uma vez, ainda caminhei e caminhei, muito tempo, caminhei tanto que a boca se ressecou completamente e está agora resseca tanto que não posso dizer nada -.
A mulher esperava. Hunter teve a impressão de ver cicatrizes nos seus tornozelos, semelhantes às cicatrizes das cadeias mas não tinha certeza.
O chefe disse algo e a mulher traduziu em seguida.
- Finalmente o senhor veio à aldeia.
Hunter não compreendeu.
- Esperavam-me? perguntou, surpreendido que a sua voz tivesse passado
através do ár abafadiço, e os dois fizeram um gesto afirmativo.
- Porque me esperavam?
- Necessitamos do senhor, disse Mary.
Engano, pensou Hunter, outro engano. Como muitas vezes. Como tantas vezes. Como demasiadas vezes já para poder acreditar em coincidências.
- Se precisam de dinheiro -. Tocou o seu bolso, mas o que já sabia, não podia ter mudado: só tinha algumas moedas de cinquenta dólares.
O chefe fez um gesto negativo e Mary traduziu o seu gesto para o inglês.
- Não precisamos de dinheiro, disse. O senhor nos dará outra coisa, algo que possa nos ajudar de verdade.
Hunter, conformado, fez um gesto afirmativo. Cherin sempre dizia que deviamos chegar lá onde o dinheiro não era a coisa mais importante, e agora estou aqui, pensou com sarcasmo. Esperou para ver o que ia passar.
- A chuva, acrescentou Mary.
- A chuva? Hunter olhou para o chão e logo para o céu. As duas substâncias
secas pareceram-lhe igualmente irreais, igualmente imóveis, eternas.
- A chuva, disse Hunter lentamente pesando as palavras justas, não
depende de mim. Nada depende de mim, recordou. Mas não o pronunciou.
O chefe murmurou algo.
- O suco da vida vem do ventre da criação, traduziu Mary. As palavras
soaram solenes, um pouco graves, como se Cherin fizesse o sinal e o hino
começasse a tocar.
- Não compreendo, disse Hunter.
- Só há uma saída da seca. Uma solução.
Hunter esperava. Mary o olhava e Hunter teve a impressão que detrás deste olhar havia algo mais que uma simples busca de palavras justas para a tradução. Que o media, pesava, como se o estivesse escolhendo entre uma multidão pantanosa.
- Quando a seca se prolonga é costume que o chefe se ofereça em sacrificio
num rito especial.
- Um rito especial?
- Corta o seu ventre e umidifica a terra com o seu suco.
A Terra umidificada com sangue. Esta cena, pensou Hunter, agradaria muito a Cherin. Deveria estar aqui agora - em meu lugar, desejou.
- Compreendo que esteja retardando, disse.
- O senhor não percebe, disse Mary suavemente. Ainda não.
Hunter olhou-a intrigado.
- Os nossos contos relatam que às vezes vem um estrangeiro. Que tem
mais suco. Por isso, depois do seu sacrificio, chove durante mais tempo.
Hunter sentiu uma vertigem. Sentiu na boca o palpitar das substâncias, sentiu como o tecido lutava pelo líquido e lambiu os lábios.
- Estão inventando coisas, intentou. Desejam amedrontarme.
Mary fez um sinal negativo com a cabeça.
- São coisas conhecidas. Todos na aldeia sabem. Por isso estão tão
felizes que o senhor tinha vindo.
- Felizes? Hunter não viu ninguém. Só essa mulher e o chefe. As
crianças já não ousavam chegar perto.
- Felizes, confirmou. Choverá muito.
Engano. Um dessses numerosos enganos, pensou Hunter.
- Não tenho nenhuma intenção de me cortar o ventre, disse. Fez um
esforço para sorrir, mas o rosto sério de Mary lhe disse que não o logrou.
- O senhor não tem alternativa, disse surpreendida. O senhor não
está obrigado a compartir o destino com a maioria. O senhor pode cambiar
o destino. Não precisa morrer de sede. Porque…
Porque posso morrer do meu próprio suco, pensou Hunter.
- A senhora acredita nessas coisas? A senhora estudou…
- Acredito. Estudei antropologia, disse Mary.
Hunter fez um gesto afirmativo com a cabeça e de repente sentiu que
estava cansado. Muito cansado. E pensou que já fazia muito que não olhava
o seu correio eletrónico. Que já fazia muito que não sabia o que estava
sucedendo no mundo. Era possível que tinham encontrado Cherin e o tinham
fuzilado. Era possível que só ele tinha escapado de toda a cela e que
o estavam procurando. Podia ser que já deixaram de procurá-lo. O único
que nunca desistiu foi Cherin. Os outros eram mais brandos. Dizia-lhes
que eram crianças tediosas, que estavam lá para distrair-se. Pensavam
que era divertido disparar contra a polícia e jogar bombas, e por isso
vieram. E Cherin repetia que era necessário destruir
tudo o velho para criar algo novo, e então destruiam. Para os outros,
dizia Cherin. Não o fazemos para nós. Para os outros. Tudo era para os
outros. Cherin acreditava. E se ele já não estava - Mary tocou a sua
mão.
- Acompanhe-me, disse.
Hunter vacilou. Pensou que era um estranho malentendido, que deveria
pronunciar a palavra que explicaria tudo, mas não logrou lembrar coisa
nenhuma, absolutamente nada excepto aquela cara infantil que jamais esqueceria
e aquela mão feminina, a mão daquela mulher que sempre esteve perto e
que sempre estendia a mão para tocar o trinco.-
- Aonde? disse.
- Não muito longe. Já chegou ao lugar justo, disse Mary, e já quase
estamos preparados.
Hunter pensou na passagem de avião, que levava no seu sapato desde o encontro com os franceses. Deixaram-lha com clemência e disseram-lhe que a utilizasse o mais pronto possível porque esses lugares tão ásperos não eram para ele. Todo o tempo pensava que não a poderia utilizar, que era um pedaço duma substância inútil de um mundo inútil ao qual já não pertencia. É possível que se tivesse equivocado, mas agora isso será verdade para sempre.
Um homem que apareceu de repente ao lado do chefe e tinha na mão uma lança de cor viva fez-lhe um sinal amável. Os outros guerreiros chegaram mais perto e como ele não se moveu, começaram a ajuntar-se ao seu redor. Todos lhe davam palmadas na espalda e gargalhavam.
- É o nosso homem, disse um deles em swahili e todos moveram a cabeça afirmando.
O que daria Cherin para estiver no meu lugar, para relacionar-se sem
dificuldades com gente simples, pensou Hunter, e não pôde evitar o riso.
A sua benevolência causou entusiasmo aos guardas. Atiravam-se sobre os
joelhos ante ele e revolviam-se na poeira. Ouviu golpes de tambores que
se apinhavam e gritos guturais que cortavam o ritmo e vinham cada vez mais
perto.
Você decide e depois se arrepende, escreveu-lhe Cherin. Quando é
realmente necessário, você se acobarda. Você torna-se perdido como um
cão sem dono. Como aquela vez em frente da embaixada. Só deveria entrar
pela porta, e tudo seria feito. Mas você acobardou-se, deixou o saco e
fugiu. E assim reventou aquela povre mulher que foi a pedir um visto. E
sua criança. E a cela passou a ter mala reputação. Matam mulheres e
crianças em vez de matar o inimigo de classe. Há uma linha fina entre
a morte inútil, miserável, povre, e a morte que modifica o mundo. Você
não sabe traspassar esta linha.
Linha, pensava Hunter. Fazer uma linha. Em algumas línguas significa lograr algo, em outras fugir. Quem sabe o que significa aqui.
O chefe parou-se em frente dele. Tirou a faca de detrás da cintura e deu-lha segurando-a pelo fio. Quando a asa acomodou-se na mão, Hunter pensou que só agora tudo era claro e que aqueles que nos bares ilegais do porto lhe diziam que o Sem-nome só se pode achar em Ayemhir tinham razão. Aqui estava e esperava. Esperava-o.
O chefe estendeu as mãos. Hunter sabía que não havia outro caminho.
Fez um gesto afirmativo com a cabeça e o chefe respondeu-lhe com o mesmo
gesto. Hunter leu na sua cara a satisfação de que a vítima, que era
de terras distantes e salvaria o deserto da seca, tinha vindo à aldeia.
Empunhou a faca, pôs-lha no seu ventre, pressionou e cortou. Primeiro
era somente uma fina linha vermelha. Sentiu na cara as primeiras gotas
de chuva.
Tradução: Jasmina Markič